O que você prefere: um carro zero quilômetro com vários itens de última geração (só que o veículo não tem direção nem consegue engatar a segunda marcha) ou um carro usado que funciona perfeitamente, com direito a direção hidráulica e câmbio automático?
Comparando os elencos de Costa do Marfim e Grécia você entenderá a analogia. De um lado, os consagrados Yaya Touré e Didier Drogba na companhia de jogadores que atuam ou já atuaram em clubes de ponta na Europa, como Gervinho, Kalou e Kolo Touré. De outro lado, os ilustres desconhecidos Holebas, Salpingidis e Samaris, jogadores que requerem uma pesquisa para descobrirmos em que canto atuam ou deixam de atuar.
Só que uma das grandes graças no futebol é que ele não se limita aos nomes, às famas, aos pré-conceitos. Existe permeando tudo isso alguns aspectos imponderáveis e outros concretos, como o sistema de jogo e a organização. Nesse sentido, os gregos comandados pelo português Fernando Santos deram um banho nos marfinenses comandados pelo francês Sabri Lamouchi. Praticamente impecável no ponto de vista tático, a Grécia conseguiu uma vitória histórica em Fortaleza e conseguiu sua primeira classificação para a fase oitavas-de-final numa Copa do Mundo. Um feito que só foi possível porque os jogadores foram heróicos e fiéis. Heroísmo que era flagrante na determinação em cada jogada de ataque ou defesa, fidelidade que era explícita na confiança no modelo de jogo proposto pelo treinador.
E olha que o percurso da Grécia no jogo foi duríssimo. Logo aos onze minutos, Panagiotis Kone precisou ser substituído por motivo de contusão - Andreas Samaris foi o escolhido para entrar em seu lugar. Uma seleção européia, acostumada a temperaturas mais amenas, que gasta uma substituição tão precocemente num jogo que promete ser desgastante, certamente sofre algum tipo de abalo. Pior que isso é ter que fazer nova substituição forçada doze minutos depois: dessa vez quem deixou o gramado foi o goleiro Orestis Karnezis, dando lugar para Panagiotis Glykos. Ouvi vaias vindo das arquibancadas no momento em que Karnezis deixava o campo de jogo e juro que prefiro não entender o que as motivou. Comportamento de gente que não deveria estar num estádio, mas num hospício (com todo respeito à luta antimanicomial).
Duas substituições precoces, calor e um adversário tecnicamente superior. O que fazer para buscar a vitória nessas condições? Jogando bola e sendo organizado. Simples assim. A Grécia jogou bola e foi organizada, às vezes não necessariamente nessa mesma ordem, mas o fato é que por todo o jogo os gregos mostraram mais conjunto, mais unidade, mais sincronia coletiva que os marfinenses. Construiu chances claras, como na jogada de contra-ataque onde Georgios Samaras serviu Jose Holebas e o lateral-esquerdo, que cruzou o campo como se fosse um raio, chutou com a perna direita e acertou o travessão de Boubacar Barry.
Se não foi daquela vez nem de outras, a Grécia merecidamente acabou abrindo o placar no Ceará: após saída de bola errada de Cheikh Tioté, Samaris tabelou com Samaras e mandou para a rede, ajudando a si e aos Samurais, pois naquele momento o Japão também era concorrente à classificação e dependia de um tropeço dos Elefantes para ter chance de avançar.
Veio o segundo tempo e a superioridade tática grega se manteve. Apostando numa defesa sólida e em saídas ligeiras nos contra-ataques, as principais oportunidades de gol eram dos europeus. Lamouchi finalmente abriu mão de um de seus volantes (escolheu tirar Tioté) para colocar Wilfried Bony, tendo no setor ofensivo um quarteto que também incluía Salomon Kalou, Gervinho e Didier Drogba. E foi através de uma assistência de Gervinho, grande destaque da Costa do Marfim nessa Copa, que Bony recebeu na área para empatar o jogo e recolocar os africanos na zona de classificação para a fase oitavas-de-final.
Restavam cerca de quinze minutos mais os acréscimos para os Elefantes confirmarem sua primeira classificação para as oitavas na história das Copas. Só que era exatamente esse o sonho dos gregos: o ineditismo das oitavas. Àquela altura, a Colômbia já era soberana no jogo diante dos japoneses, confirmando o primeiro lugar na chave e a eliminação asiática. Cabia a gregos e marfinenses resolverem no confronto direto com quem ficaria a segunda vaga no grupo C.
No mesmo minuto (o 78º) que Lamouchi trocou o astro Drogba (que não jogou no nível que dele esperamos) por Ismael Diomandé, Santos tirou o capitão Giorgios Karagounis (que teve atuação fantástica tanto pelo esforço no alto dos seus trinta e sete anos quanto pela liderança que exerce dentro das quatro linhas, com direito a chute no travessão) para colocar Theofanis Gekas, outro jogador experiente no elenco da Grécia. Cinco minutos depois, Lamouchi fez o inconcebível, tirando Gervinho de campo e colocando Giovanni Sio.
A bola pune, caro Lamouchi. Nos acréscimos, em descida da Grécia pelo lado esquerdo, Salpingidis cruzou rasteiro buscando Samaras e Sio, ironicamente Sio, calçou o camisa sete dentro da área. Carlos Vera viu e assinalou a penalidade máxima. Os gregos desabaram em comemoração. Era a chance que eles precisavam para arrancarem a classificação. Era tudo o que eles poderiam pedir aos deuses do Olimpo e da bola. E a bola ficou para aquele que sofreu o pênalti: Samaras. Com um chute no canto esquerdo que passou a centímetros das luvas de Barry, a Grécia comemorou o desempate como se fosse um título. Uma classificação épica. Com tamanha organização e entrega, é possível que esse carro usado ainda deixe para trás outros automóveis mais badalados. Fernando Santos já provou que sabe o que está guiando. E os gregos provaram que não estão no Brasil a passeio. Melhor não duvidar de até onde os campeões europeus de 2004 possam chegar.
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